agosto 27, 2010

Dreaming of Zaïda

Car@s, há já algum tempo que não actualizava o Blog e, consequentemente as novidades relativamente aos meus escritos. Deixo-vos hoje com mais um capítulo integrante d'O Feitiço da Moura (ainda por terminar).

Espero que gostem.
Comentem ;)
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O espaço à sua volta era desconhecido. Via muralhas de pedra à sua frente, algumas torres que, de acordo com a sua orientação, marcavam os pontos cardeais e, atrás de si, tinha a maior de todas que deduziu tratar-se da área habitacional do castelo.

Manteve-se na sombra, encostada a um canto, encoberta por uma carroça de madeira carregada com feno. Olhou com mais atenção, todo o espaço e indumentárias lhe eram estranhas – reconhecia-as historicamente, mas nunca antes sonhara com elas. Observou pormenorizadamente o que a rodeava. Havia homens com túnicas e calças largas, cintos de pele de onde pendiam espadas longas e de lâmina curva, alguns punhais aparentemente bem afiados, e tinham, na sua maioria, turbantes e um ar feroz. A pele curtida pelo sol sobressaía sob as vestes de tons claros. O sol estava quente e do chão elevavam-se ondas de calor que distorciam um pouco a paisagem. Quase não se viam mulheres.

Perguntou-se o que a levara ali. A sua própria roupa não era muito diferente, uma túnica branca, larga e comprida, totalmente opaca, sendo que o único adorno era uma espécie de bordado tosco em redor do colarinho arredondado. Também ela tinha um pano sobre o cabelo, com a diferença que o seu não se limitava a tapar a farta cabeleira ruiva, enrolava-se ainda ao seu pescoço para que nenhum pedaço pele indevido fosse exposto aos olhos dos demais. Apenas a cara e as mãos estavam a descoberto.

Continuava sem perceber o propósito de tudo aquilo. Uma pequena vibração no ar fê-la virar-se para o seu lado direito a tempo de ver outra figura feminina esgueirar-se pela sombra até ao canto oposto àquele em que se encontrava. A sua movimentação parecia-lhe suspeita pela forma cuidadosa como se tentava fundir com as sombras e com a própria pedra da parede. Vestia-se de modo semelhante ao seu, mas em tons castanho-claro. Uma mecha de cabelo negro conseguira escapar-se ao lenço que lhe cobria a cabeça, tapando também parcialmente o rosto.

Tentando passar despercebida, deslizou junto à parede e seguiu a outra mulher. Alguns metros à frente a figura desapareceu numa entrada obscurecida. Quando atingiu o ponto onde lhe perdera o rasto verificou que o corredor se bifurcava em duas passagens húmidas, fracamente iluminadas por tochas bastante espaçadas umas das outras. Virou-se para se certificar que não fora seguida. A entrada permanecia deserta e os sons exteriores mantinham-se afastados e abafados pela espessura da pedra que a rodeava. O seu instinto dizia-lhe que optasse pelo corredor à sua direita. Não havia qualquer som que denunciasse o caminho da sua antecessora. Uma voz dentro da sua cabeça insistia nesse mesmo corredor. Inês aprendera a não ignorar as vozes que lhe sussurravam em sonhos. Deu um passo em frente e soube que estava certa. O chão estava parcialmente coberto de palha, já bastante pisada, o que permitia caminhar mais rapidamente sem causar ruído. Avançou até chegar à boca do túnel onde o espaço se abria para uma sala ampla com diversas reentrâncias e grades. Calculou encontrar-se nas masmorras. No mesmo instante em que se ia pôr a descoberto reparou na figura vestida de castanho-claro encostada às pesadas barras de ferro da cela mais ocidental da sala. Manteve-se na penumbra do corredor e tentou ouvir o que ela dizia à pessoa cativa. O som chegava-lhe sussurrado e com uma ligeira reverberação.

- Ao cair da noite. É a única forma. Há um túnel que segue directamente até ao bosque, bem para lá das muralhas exteriores.

- Zaida, não! – Inês estacou ao ouvir a voz. Reconhecê-la-ia onde quer que fosse. – Não te vais arriscar por mim.

- Condenei-me no preciso momento em que me permiti olhar para ti, não me faças sofrer mais ficando aqui cativo. Sabes o que te espera se não fugires.

- Se o fizer, o teu pai vai perceber que não foi falha dos seus homens, o castelo está bem guardado e não há escapatória possível a menos que haja alguém que a permita.

- Não me importa, não quero que morras aqui! – Zaida estava ajoelhada no chão de pedra, as suas mãos agarradas às grades que prendiam o cavaleiro.

Inês assistia atónita pela imagem que agora vislumbrava do homem cativo. Diogo afagava as mãos da mulher à sua frente de forma terna. Não compreendia a ligação da sua alma gémea com aquela desconhecida. Pensara ser impossível haver um laço tão forte como aquele que partilhava com ele, mas apercebia-se agora que não. A menos que aquele cavaleiro não fosse Diogo. Ela estava ali por um motivo, mas não pertencia de todo àquela época. Ponderou se ele podia estar na mesma situação, se o afastamento que sentira nele nas últimas semanas teria algo a ver com o que agora presenciava.

- Estarei aqui após o jantar. Temos pouco tempo para percorrer o túnel e deixar-te a salvo antes de o guarda ser rendido. – Levantou-se e voltou a cobrir o rosto.

Inês teve apenas escassos segundos para percorrer o caminho de volta até à bifurcação onde se ocultou pela curvatura natural da parede para evitar ser vista. Não se atreveu a regressar à cela. Iria aguardar pelo cair da noite para segui-los até ao ponto de fuga. Esperou um pouco mais até ter a certeza que seria seguro voltar para o pátio e procurou os estábulos para se esconder. Pela posição do sol calculou que ainda faltassem umas três horas para o crepúsculo. Pegou numa escova e num pequeno banco tosco de madeira e dirigiu-se à divisória mais afastada da porta onde se encontrava uma égua de pelo negro com uma pequena mancha branca em forma de crescente, ligeiramente acima dos olhos. Escovou-a afagando-lhe o pescoço. O animal mostrava-se extremamente dócil. A tarefa acalmou-lhe o espírito ajudando-a a organizar as ideias. Ela estava ali por um motivo, depreendia agora que o motivo estava directamente ligado a Diogo. Não tinha a certeza sobre a época, mas calculou que fosse um período relacionado com a ocupação árabe na Península Ibérica. O seu pensamento voou para a lenda do projecto em que estava envolvida. Poderia a rapariga que vira ser Zaida, a filha do alcaide do castelo da Serra?

O sol continuava a descer na linha do horizonte. As tochas começaram a ser acesas por dois jovens ao longo de todo o pátio e em alguns pontos da muralha interior.

Escovou a crina da égua uma vez mais pousando a mão no focinho do animal.

- Está na hora. – murmurou enquanto pousava o utensílio no banco de madeira.

Esgueirou-se sorrateiramente dos estábulos em direcção às masmorras deixando-se ficar no lado oposto à entrada, aproveitando o monte de feno para se esconder da vista dos demais. Não teve de esperar muito para ver a silhueta feminina surgir das sombras causadas pela tocha que iluminava o corredor da muralha logo acima da sua cabeça. Estava envolta num manto cinzento e movia-se tão silenciosamente que nem os poucos guardas presentes no pátio deram pela sua presença. Aguardou um pouco mais. Não tinha a certeza se Diogo iria sair pelo mesmo caminho. Deveria ter averiguado o túnel da esquerda durante a tarde. A dúvida insistia em martelar-lhe o cérebro. Não sabia se devia seguir a jovem ou aguardar simplesmente. Corria o risco de lhes perder o rasto se esperasse muito mais.

A temperatura arrefecera consideravelmente com o cair da noite. Levantara-se uma leve bruma que conferia ao castelo uma aparência etérea à luz bruxuleante dos archotes com a forte humidade a orvalhar os arbustos e árvores em seu redor.

Como que impelida por uma força invisível cobriu o cabelo e o rosto da melhor forma possível e dirigiu-se aos túneis. Manteve-se atenta a toda e qualquer oscilação de luz ou ar enquanto tentava fundir-se com a parede. Avançou até à bifurcação e apurou o seu ouvido. Nada. Silêncio absoluto. A luz também não tinha qualquer indicação de movimento causado pela passagem de uma pessoa quer por uma corrente de ar.

No preciso momento em que decidiu avançar pelo caminho que a levaria às celas, ouviu um som vindo do corredor oposto seguido de um silêncio surdo. Provavelmente alguém tinha pisado um galho caído fazendo com que este se quebrasse, sendo o som amplificado pelo eco causado pelas paredes de pedra. Não perdeu tempo e seguiu o caminho à sua esquerda serpenteando pelo túnel fracamente iluminado. Só quando vislumbrou a capa cinzenta a desaparecer um pouco mais à frente se apercebeu que não podia ser vista. Acautelou-se estugando o passo e tentando esconder-se nas poucas saliências da construção. O corredor desembocava num pátio circular onde se encontrava o portão de ferro de acesso à cisterna do castelo. À primeira vista não havia qualquer outra saída, à excepção do sítio por onde tinham entrado, mas Inês reparou na capa cinzenta a desaparecer por entre as pedras no lado oposto ao do gradeamento da divisão. Avançou pé ante pé e espreitou pela abertura. Tratava-se de um corredor estreito, íngreme e escuro que parecia enterrar-se nas entranhas da serra. Inês não tinha qualquer fonte de luz consigo e o archote que a filha do alcaide levava ameaçava desaparecer da sua vista em segundos. Fechou os olhos para melhor se habituar à escuridão e seguiu o casal. Perdeu a noção do tempo, desceu a passo lento com receio de cair e, dessa forma, denunciar a sua presença.

O ar era húmido, frio e bafiento. A pedra à sua volta estava coberta de musgo e, possivelmente, com um abundante número de bicharocos que Inês nem queria imaginar, tão grande era a sua fobia por alguns insectos e seres rastejantes.

Uma fraca corrente de ar fez-se sentir. Devia estar próxima da saída do túnel. Estacou alguns metros antes. Pela densidade das árvores calculou estarem algures dentro do bosque que descia a encosta desde as muralhas exteriores até à vila. Diogo estava alguns metros à sua frente envergando a capa que minutos antes envolvia Zaida. Segurava-lhe ternamente no rosto, roçando o polegar pela maçã do rosto rubra.

- Não quero deixar-te. – Ouviu-o sussurrar.

- Tens de ir ou seremos encontrados e não serás o único a responder perante a fúria do meu pai. – Zaida tentou afastar-se como que para incitá-lo a partir. Diogo não o permitiu. Com a outra mão cingiu-lhe a cintura e colou-a a si cobrindo-lhe os lábios rosados com os seus. Um beijo profundo, apaixonado, de gratidão e de promessas. Queria selar o compromisso de voltar por ela, de reclamá-la como sua. Afastou-se relutantemente, ofegante e começou a correr pela serra desaparecendo no meio da vegetação.

Inês não reparara que estava a suster a respiração. Doía-lhe o peito, como se tivesse sido atingido mortalmente por uma flecha. Era um sonho, tinha de se convencer que era um sonho e não tinha de significar literalmente o que tinha visto. Podia ser apenas uma repercussão do seu subconsciente pelo afastamento que sentia da parte de Diogo misturado com a lenda que a acompanhava há meses por estar envolvida no projecto da sua amiga Leonor. Podia ser um simples sonho sem qualquer significado. Podia… Deu por si em completa negação. Os seus sonhos nunca eram casuais, não quando tinha plena consciência de os estar a viver. Voltou a olhar para a saída e já lá não estava a figura feminina, tinha simplesmente desaparecido. Não a vira regressar ao túnel, teria de passar directamente por si, teria sido descoberta. Arrepiou-se, por isso, quando sentiu uma respiração directa no seu pescoço ao mesmo tempo que a pessoa atrás de si lhe dizia:

- Esquece-o! Ele é meu! Sempre foi e voltará a ser. Não tentes sequer intrometer-te, a menos que queiras lidar com as consequências.

Virou-se assim que conseguiu vencer o torpor que se tinha apoderado do seu corpo. Não estava lá ninguém. Reconheceu a voz, ouvira-a diversas vezes ao longo do dia ou horas que ali passara. Era um timbre inconfundível. O comando subjacente nas suas palavras confirmava-lhe o pior dos receios. O sonho tinha uma forte razão de ser. Era um aviso claro que a lenda era mais real do que se pensava e o afastamento de Diogo estava intrinsecamente ligado à história da serra e do castelo. O pio agoirento de uma coruja fez-se ouvir perto demais. Inês correu pelo bosque. Queria sair daquele local, queria acordar… Depressa.


A luz do sol jorrava pela janela do seu quarto. Passou uma mão pelos olhos para clarificar a visão. Estava alagada em suor e lembrava-se de cada pormenor da sua noite agitada. Teria de investigar a lenda sob uma perspectiva diferente, teria de falar com Leonor, mas antes de mais, tinha de tomar um duche.

2 comentários:

Fábio Ventura disse...

Gostei muito deste capítulo. Acho que nos abre bastante o apetite em relativamente à tua nova história.

Também reparei numa certa evolução e amadurecimento da tua escrita em relação ao "Vestido", especialmente nas descrições. Por isso, isto promete ;)

Milene disse...

Obrigada pelas tuas palavras, Fábio =)

Sim, sem dúvida que a escrita está diferente (por pouco que seja). Eu tinha 21 aninhos quando comecei a escrever O Vestido, este comecei-o aos 26 (sim, sim... há praticamente 3 anos - shame on me, mas o projecto esteve parado por motivos óbvios [para alguns lol]).

Espero que gostes mais d'O Feitiço da Moura do que gostaste d'O Vestido, que sei não ser bem o teu género ;)