E eis que hoje voltei à escrita...
Quer dizer, o excerto que aqui vou colocar já está escrito há quase um ano, mas estava em papel e hoje levou muiiiiiiiiitos retoques. É capaz de ter alguns erros tanto a nível de construção, como de pontuação... Simplesmente apeteceu-me partilhar a primeira versão de um dos capítulos daquilo que pode vir a ser o 2º livro... que conta com 2 personagens já vossas conhecidas, embora o protagonista deste excerto seja o Diogo - a personagem principal masculina do primeiro livro - O Vestido.
O seu turno terminara à meia-noite. Embora tivesse trabalhado apenas seis horas, parecia-lhe que lá tinha estado mais de vinte. Sentira-se adoentado durante os últimos três dias. A mudança brusca de temperatura e o ar frio da serra poderiam ter contribuído grandemente para o aparente resfriado.
Sem pensar, levou a mão ao bolso das calças. Sentia-se seguro sempre que pegava na pequena cruz de prata que encontrara na gruta. Não a tinha mostrado a ninguém, nem mesmo a Inês. Não tinha por hábito ocultar-lhe nada, mas sentiu necessidade de manter secreto aquele pequeno objecto. Levava-o sempre consigo para onde quer que fosse. Nao se considerava religioso, mas aquela cruz atraía-o de uma forma que nenhum outro símbolo ou objecto o tinha atraído até então. Não conseguia explicar o seu fascínio nem a necessidade premente que sentia em tê-lo constantemente consigo, em segurá-lo por entre os dedos.
A lua estava cheia e iluminava o céu limpo e estrelado. Quase não havia trânsito e o caminho, apesar de longo, apontava-se-lhe numa única direcção. Iria demorar cerca de quarenta e cinco minutos a chegar à serra. Apercebeu-se que tinha pensado nisso durante todo o dia. Não em voltar para o seu apartamento, não em ir visitar Inês a casa de Leonor, mas sim em dirigir-se ao recanto escondido entre a muralha do Castelo e o penedo que encobria a entrada daquela espécie de gruta. Algo nele impelia-o para aquele sítio. Não sabia porquê, mas sentia que tinha de ir.
Apertou a cruz uma vez mais e acalmou a mente. Conduziu sem tirar os olhos da estrada, ultrapassando largamente o limite de velocidade imposto por lei. A urgência de chegar apressava-o. Levou meia hora até estacionar em frente ao castelo. Ali em cima a única iluminação era a da estrada, que era escassa. Tinha plena consciência da penumbra em que o trilho estaria mergulhado, dado que nem a luz da lua alcançava o solo, tão espessas eram as copas das árvores.
Não levava lanterna e optara por desligar o telemóvel. Agarrou novamente na cruz que tinha no bolso e sentiu a confiança que dela emanava. Seguiu pelo trilho como se o tivesse percorrido toda a sua vida, pé ante pé, sem tropeçar, sempre em frente. Era como se uma força alheia o guiasse, desviando-o das raízes salientes e das pedras traiçoeiras. Lá em cima o vento soprava com mais força como se uivasse à lua. Estava frio e a humidade que caía arrefecia-lhe o corpo e molhava-lhe o cabelo.
E ali estava ela... Ao lado do penedo que cobria a entrada, sob a luz fraca da lua, bela e esguia. Os seus cabelos negros repletos de caracóis esvoaçavam, a saia e a túnica brancas resplandeciam como que dotadas de luz própria, os seus olhos tristes fitavam-no. Não chorava, como acontecia no seu sonho, mas também não lhe sorria. Limitava-se a olhá-lo como se o estivesse a avaliar.
- Esperei muito para te reencontrar. Pensei que não voltasses. – disse por fim.
- Estou aqui, agora.
- Acordaste-me do meu sono, deste-me o teu sangue no mesmo barro em que outrora te dei água, transportas contigo o mesmo símbolo que me ofertaste no dia em que passei pela tua cela durante o tempo que estiveste cativo. O mesmo símbolo que te devolvi na hora da tua morte, nesta mesma gruta que nos serviu de túmulo.
Diogo pegou na cruz e retirou-a do bolso, expondo-a aos olhos da mulher que lhe falava com voz doce, calma e de sotaque salgado.
- Aqui a tens, se a quiseres de volta.
- Fica com ela, nobre cavaleiro. Não me trouxe sorte da primeira vez que ma deste, nem mesmo a ti quando ficaste sem ela. Quebrando o padrão pode ser que juntos quebremos também o que aqui nos prende. Ficaremos juntos desta vez. Nem mesmo a morte nos pode separar.
A voz dela enredava-o numa teia invisível, mas forte, na qual ele se estava a deixar prender e perder. Estava como que enfeitiçado pela mulher à sua frente. Não tinha a certeza se percebia a totalidade das palavras proferidas, nem mesmo do sentido que tudo aquilo lhe parecia fazer, mas também não questionou. Deixou-se apenas levar pelo momento, pela verdade dela.
- Diz-me o teu nome. – pediu-lhe num murmúrio rouco, enquanto se aproximava lentamente da figura feminina que permanecia à sua frente com um cântaro nas mãos, o mesmo cântaro que vira no seu sonho.
- Não te lembras, nobre cavaleiro? – Soou quase que desapontada. – Talvez o tempo te tenha retirado algumas memórias. Sou Zaïda, filha do alcaide do castelo. Estiveste cativo do meu pai durante uma das batalhas entre mouros e cristãos. Foi então que nos apaixonámos. Quando te libertaram e regressaste para me levar, foste ferido por uma seta. Escondi-te aqui e saí para te trazer água. Queria limpar-te a ferida, dar-te de beber e tentar evitar o pior. Mas também fui atingida. Consegui arrastar-me até aqui e devolver-te a cruz. Morri nos teus braços. Estavas já muito fraco e nada havia a fazer.
Diogo sabia que a história que ela lhe contava era verdade, conhecia a lenda, cada detalhe, só não se tinha apercebido do seu papel nela, pelo menos não até àquele momento.
- Estou aqui, agora. – repetiu, abrindo-lhe os braços para a acolher.
Zaïda sorriu pela primeira vez. Um sorriso sincero, pleno. Estava linda e radiante, com as suas vestes alvas, com os seus cabelos negros e revoltos ao sabor do vento. Os seus olhos, também eles negros, tinham ganho um novo brilho e o cântaro repousava à entrada da gruta. Ela caminhou para se aninhar no abraço forte e seguro que Diogo lhe oferecia. Deambulara durante séculos sem saber do seu nobre cavaleiro, sozinha e condenada. Era vista raramente por algum turista que se aventurasse por aqueles caminhos sinuosos durante uma noite de lua cheia, mas nunca nenhum a tinha conseguido tocar, nem mesmo falar-lhe. Ela desvanecia-se num gemido de dor mesmo antes de alguém ter hipótese de o fazer. Agora estava ali, completa e feliz, nos braços do homem que amava. Aquele que lhe tinha prometido, séculos antes, tirá-la daquele lugar. Tinha também uma grande certeza: ele estava vivo, ela não. Teria de arranjar forma de alterar essa situação, mas agora que sabia que o tinha de volta e que o tinha preso, era tudo uma questão de tempo até encontrar uma solução. O encantamento que lançara na pequena cruz, no seu leito de morte, tinha sido suficientemente forte para o atrair. Pensaria num outro feitiço para o fazer definhar até que a sua alma se lhe juntasse ou, melhor ainda, arranjaria forma de voltar a viver. Por enquanto, contentar-se-ia com as noites de lua cheia.
- Vem! Estás cansado e a noite já vai longa. – Agarrou-lhe na mão, dirigindo-se para a fenda na muralha.
Lá dentro ardiam cinco velas e o chão estava coberto de uma espécie de colchão de musgo com uma capa grande de lã por cima. Zaïda fez-lhe sinal para que se deitasse. Diogo obedeceu-lhe, sem nunca deixar de a olhar. Ela deitara-se a seu lado, aninhando-se nele, enquanto entoava uma canção numa língua que ele desconhecia. As suas pálpebras começaram a pesar-lhe e a sua mente enevoava-se, fazendo-o deslizar gradualmente para o sono. Ela continuava a cantar suavemente em voz quase sussurrada, uma cantiga de embalar de outros tempos, um encantamento subentendido e bem dissimulado. As velas ardiam e as sombras dançavam. Lá fora apenas o som da mata e o vento. Diogo dormia profundamente, embalado pela cantilena e pelo aroma silvestre da mulher a seu lado.
Estava agrilhoado numa cela algures na torre do castelo. Conseguia ouvir o som dos cascos dos cavalos e os gritos dos homens que lutavam no exterior. Fora capturado no preciso momento em que a vira – e que visão tinha sido...
Tinha conseguido chegar à muralha à força da espada. Deixara maior parte dos seus companheiros para trás. Tentara abrir caminho até ao portão, só assim seria possível entrarem no castelo. Tinham planeado o ataque durante semanas e tudo parecia correr-lhes de feição. Foi então que a viu, toda vestida de branco, de cabelos negros como a noite, de pé nas muralhas do castelo, cantando ao vento. Não a ouvia, mas apercebeu-se do movimento dos seus lábios vermelhos e carnudos. O seu coração correu, o seu estômago revirou-se e ele ficou paralisado, ali, a contemplar aquela beldade no cimo da muralha. Não reparara no movimento, não ouvir qualquer som, nem mesmo quando alguns dos seus próprios homens gritaram o seu nome. Deu por si agrilhoado, com quatro guardas a arrastá-lo para o interior da fortaleza. E agora ali estava, sem saber dos seus companheiros, mantido em cativeiro e, acima de tudo, sem a ver. Onde estaria? Quem seria ela?
Ouviu passos... Eram mais suaves do que aqueles que ali o tinham levado. Ainda era de dia, conseguia distinguir alguma luz filtrada pelas fendas que serviam de janelas. Não sabia há quantas horas ali estava, não sabia se ia ficar muito tempo entregue a si mesmo ou se seria executado ou torturado. Não sabia mesmo se teria direito a alguma comida ou água, e tinha de confessar que tinha sede, a garganta ardia-lhe. Foi então que a viu novamente. Estava à sua frente, direita, solene, resplandecente, transportando um pequeno tabuleiro de madeira com uma caneca de barro cheia de água e alguns pedaços de pão duro. Não era o tipo de comida a que estava habituado, mas era melhor que nada. Ela sorria-lhe e estendeu-lhe a comida por entre as barras de ferro que o mantinham preso.
- Não posso tirar-te daqui, meu bom cavaleiro, estaria a trair o meu pai, o meu povo e a minha religião, mas posso aliviar um pouco o teu sofrimento. Come e bebe, vais sentir-te melhor depois.
- Obrigada, gentil senhora. Quem és e porque te arriscas por mim, um simples cristão?
- Meu nobre cavaleiro, vi-te lutar corajosamente, vi-te cair apenas por teres perdido o teu olhar no local onde me encontrava, na muralha, vi paixão nos teus olhos. Como podia não te ajudar? Não acredito nestas lutas, não quando podemos dialogar em vez de simplesmente matar.
- Vejo verdade nos teus olhos, senhora. E sim, viste paixão nos meus olhos. Ajuda-me a sair e prometo que te levo comigo. Também não concordo com guerras quando há tanto mais a perder do que a ganhar, vi isto quando te vi.
- Verei o que posso fazer em teu favor. Agora tenho de ir.
- Pensa em mim como o teu mais fiel servo e devoto cavaleiro, senhora.
Viu Zaïda afastar-se. Bebeu um pouco de água, estava fresca e ajudou a empurrar o pão. Um pouco mais confortável, tentou dormir, aninhando-se nos fardos de palha esquecidos no fundo da cela Os pulsos latejavam-lhe devido às grilhetas que lhe prendiam os movimentos. Felizmente tinha os pés soltos. Tentou cobrir-se com a sua capa de lã. Era grande e quente, mas a limitação de movimentos fez com que não se conseguisse tapar tão bem como gostaria. Enrolou-se sobre si mesmo o melhor que conseguiu e fechou os olhos. A sua mente voltava uma e outra vez àquele rosto de pele morena, olhos negros e lábios gentis, emoldurado por aquela cascata de caracóis lustrosos, envoltos numa fragrância silvestre. A sua voz ressoava-lhe nos ouvidos como se ela ainda ali estivesse, embalando-o como uma cantiga. Zaïda...
Tinha-lhe prometido e havia de cumprir. Havia de tirá-la daquele lugar. Zaïda...
E adormeceu.
Milene Emídio